Na entrevista especial de lançamento do Guia da Justiça®, conversamos com Sydney Limeira Sanches, presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Direto de Paris, onde aguardava para participar do 68º Congresso da União Internacional dos Advogados (UIA), ele compartilhou sua visão sobre a relevância e os desafios da advocacia em um mundo de intensas transformações sociais, políticas e tecnológicas.
• Fundado em 1843, o IAB é a instituição jurídica mais antiga das Américas, responsável pela criação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
• Além de presidente do IAB, Sydney Sanches é presidente da Comissão Especial de Direitos Autorais do CFOAB, e recentemente recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade Santa Úrsula. É Mestre em Bens Culturais, do Departamento de História – CEPDOC/Fundação Getúlio Vargas/RJ; Formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro-PUC/RJ; Pós-graduado em Direito da Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas-FGV; Membro do Comitê Jurídico e Política Institucional da CISAC – Confederação Internacional das Sociedade de Autores e Compositores; Membro do Conselho de Notáveis da CNC – Confederação Nacional do Comércio; Sócio do Escritório Sanches Advogados Associados.
Entrevista a Andrés Gianni
Guia da Justiça: Como o IAB se posiciona frente aos desafios da advocacia brasileira na atualidade?
Sydney Sanches: Embora determinadas demandas da classe fiquem muito mais centralizadas dentro da Ordem dos Advogados, o IAB tem um papel muito presente nas questões envolvendo a advocacia, inclusive porque temos assento no Conselho Federal da OAB e, por conta disso, acompanhamos as preocupações da classe.
Cabe destacar que o Instituto é uma entidade de juristas, porque não temos só advogadas e advogados associados, mas também membros da magistratura, do Ministério Público, Defensoria Pública e da própria Advocacia Pública. Dessa forma, temos essa pluralidade que nos distingue das demandas da OAB. Contudo, obviamente, os advogados têm um papel muito destacado na nossa instituição.
O Instituto é a entidade fundadora da OAB. Uma das obrigações originárias da instituição, quando ela foi fundada, em 1843, era organizar a classe dos advogados, criar uma Ordem dos Advogados, o que aconteceu quase 90 anos depois da sua constituição. O primeiro presidente da OAB era, à época, o presidente do IAB, que foi Levi Carneiro. Então a nossa história é totalmente intrínseca.
No âmbito das nossas discussões, dentro de um país que ainda sofre muito por conta da polarização dos últimos anos, temos tido a preocupação de colocar a advocacia na centralidade do debate, como uma instituição voltada à defesa dos direitos fundamentais, dos direitos humanos, além de combater toda forma de intolerância que afeta a classe.
A advocacia brasileira é única no mundo, pois está diretamente mencionada na Constituição, o que reflete seu protagonismo histórico na defesa da democracia, dos princípios republicanos e na garantia dos direitos dos cidadãos. Esse protagonismo foi fundamental na elaboração da Constituição, com destaque para o papel do relator Bernardo Cabral, presidente da OAB, membro e detentor de todas as comendas do IAB.
A preocupação do Instituto na defesa do Estado Democrático é central. E entendemos que, sem ser uma advocacia independente, que efetivamente compreenda o valor conferido pela Constituição à classe, a advocacia não vai poder cumprir o papel que o sistema de justiça conferiu a ela. Está no artigo 133 da Constituição, que fala que a advocacia tem um compromisso muito grande com os princípios democráticos, a defesa do nosso modelo de organização do Estado, dos limites de Poderes e o compromisso de fazer com que o sistema de justiça efetivamente entregue ao jurisdicionado o resultado do funcionamento do Poder Judiciário.
Portanto, temos uma preocupação constante com relação à entrega ao jurisdicionado do papel que a Justiça tem, e são muitos fatores envolvidos nisso: as prerrogativas dos advogados, a compreensão de que, sem a advocacia, a Justiça, tal como foi montada no País, não atinge sua concretude, e a necessidade de inibir que a Advocacia seja aprisionada por alguns outros setores.
“A advocacia brasileira é única no mundo, pois está diretamente mencionada na Constituição, o que reflete seu protagonismo histórico na defesa da democracia, dos princípios republicanos e na garantia dos direitos dos cidadãos.”
Na prática, de que forma a advocacia perde a independência, e quais são as consequências para os advogados e para a sociedade?
Quando o sistema de Ordem claudica e passa a ser um instrumento para a entrega de favores para determinados grupos da advocacia, a Ordem deixa de ser a defesa da classe e se torna um trampolim para interesses econômicos. A Ordem e seus dirigentes não podem estar submetidos aos interesses econômicos ou políticos; não pode ser partidária. Esse afastamento é fundamental para reafirmar o papel de independência. Com uma estrutura independente, é possível disciplinar o advogado, garantindo que a classe seja respeitada na perspectiva que ela foi criada.
Hoje, as críticas à advocacia são enormes, e a sua importância só se restaura quando as estruturas de Ordem são independentes, permitindo que se coloque o dedo na ferida. A Ordem precisa entregar clareza, transparência e independência. Se determinados setores são aprisionados para atender a interesses próprios, o papel da Ordem como fiscalizadora do sistema de justiça fica comprometido. A atuação precisa ser republicana e transparente.
Se a advocacia não for independente, ela estará sujeita aos eventuais favores do judiciário. Os dirigentes de Ordem precisam ser parceiros nos momentos necessários, ou seja, nas iniciativas onde o judiciário esteja cumprindo o seu papel e a independência da magistratura e do judiciário sejam preservadas. Nesses momentos, a Ordem precisa ser solidária. Mas também precisa ser crítica o suficiente quando o judiciário não consegue entregar ao jurisdicionado a efetiva compreensão do Direito. Se os dirigentes de Ordem não tiverem independência, forem coniventes com os ‘favores da corte’, o advogado que atua na ponta, no juizado especial, na advocacia trabalhista de primeira instância, por exemplo, vai sentir na pele a ineficiência do judiciário.
Eu acho que a OAB tem tido essa preocupação, mas o fato é que isso precisa ser efetivamente entendido pela sociedade.
O que falta para esse entendimento?
Eu acho que a Ordem tem tido uma dificuldade de comunicar isso. É óbvio que a advocacia, como todo setor da sociedade, foi impactada por esse mundo maluco que estamos vivendo, onde ser antissemita, ser racista, por exemplo, muitas vezes é tratado como aceitável. A advocacia, infelizmente, acaba sendo o reflexo da sociedade nesse sentido.
A Ordem tem que ter um papel de comunicar melhor, para que o advogado, independentemente de seu viés ideológico, compreenda o seu papel. Hoje, há uma incompreensão muito grande. O advogado precisa entender o que ele representa para a sociedade e o poder que ele tem. Para isso, a Ordem precisa melhorar a forma de comunicar esses valores, conversar mais com o advogado para que ele entenda o seu papel e aquilo para o qual ele foi formado.
E temos aí outro problema, que é a questão da qualidade da formação acadêmica, que precisa ser aprimorada. A Ordem tem um papel importante nisso, de, junto ao MEC, viabilizar a aprovação de cursos jurídicos que efetivamente entreguem uma educação que possibilite, ao final do curso de Direito, uma compreensão mais clara do que é a profissão.
A quantidade de instituições acadêmicas na área de Direito no Brasil é provavelmente desproporcional em qualquer lugar do mundo. Em comparação com o número de universidades nos Estados Unidos ou qualquer país europeu, há uma discrepância absurda, com faculdade em tudo que é lugar. O exame de Ordem, que é muito importante, já faz um filtro, mas não consegue fazer um filtro na perspectiva que estamos falando.
Seguindo essa lógica, uma formação jurídica deficiente pode comprometer a capacidade dos advogados de compreender tanto o seu papel social como o valor dos direitos fundamentais. Essa falta de compreensão pode, em alguns casos, contribuir para que, paradoxalmente, advogados disseminem discursos de intolerância, ódio, e contra os princípios democráticos?
Sendo um reflexo da sociedade, a verdade é que a advocacia também replica o discurso de ódio de uma parcela da coletividade. E, quando se replicam esses modelos de intolerância, acaba-se recaindo em uma série de ilegalidades. Discriminação, fake news, e tudo o que gera como desdobramento o caos social, que se retroalimenta, agravando esse cenário.
E a advocacia não pode refletir o caos social. A advocacia é um ofício cuja formação é justamente a compreensão desses valores fundamentais, humanos, democráticos. Se essa profissão repete o caos social – e isso significa muitas vezes replicar o pior do que acontece na política nacional, que baixou muito de nível –, ela fica condenada. Daí a importância que as instituições têm em transmitir a qualidade desses valores.
Dentro desse caldeirão todo, hoje ainda há um grave problema de enfraquecimento, ou de falta de reconhecimento, ou de desvalorização das instituições em geral. A sociedade hoje não se reconhece mais em muitas instituições, o que agrava toda essa discussão.
A Ordem dos Advogados do Brasil sofreu nesse contexto de desvalorização das instituições, de desqualificação da informação responsável, da ciência. Houve um descredenciamento institucional, em razão desse cenário de desmantelamento das instituições, porque a Ordem é uma das instituições democráticas com grande atuação. Ela sofreu diretamente, e, hoje, boa parte da advocacia não reconhece mais essa liderança. Então, há uma necessidade de se resgatar essa parcela da advocacia, ou porque foi mal formada, ou porque foi perdida ao longo desse debate público insano que a gente sofre. E é lógico que toda essa problemática está ligada não só no plano nacional, mas no plano internacional. Hoje, ouve-se muito menos as instituições internacionais. A ONU não consegue ter o papel que teve. Já não se ouve tanto o que a OEA fala, a OIT, os próprios Tribunais.
“A advocacia é um ofício cuja formação é justamente a compreensão dos valores fundamentais, humanos, democráticos. Se essa profissão repete o caos social, ela fica condenada”
Como o IAB avalia os impactos dos avanços tecnológicos tanto para a advocacia como para a dinâmica da sociedade em geral?
A sociedade convive hoje em um ambiente digital muito intenso. Nesse contexto, cresce a preocupação com novas tecnologias que impactam o Judiciário, como as ferramentas de inteligência artificial, que são inexoráveis. Essas tecnologias podem ser muito produtivas no exercício das atividades, na melhoria da entrega do sistema de justiça, mas é essencial garantir que não suprimam o pleno acesso à justiça.
A advocacia brasileira possui características bastante diversificadas, até por sermos um país de dimensões continentais, com um número expressivo de advogados inscritos, cada um com demandas e necessidades específicas.
Se o uso privilegiado de novas tecnologias for um inibidor do exercício da advocacia, especialmente considerando as desigualdades entre os profissionais, o resultado será uma redução no acesso às ferramentas de justiça. Essa limitação não só contraria os princípios constitucionais como também compromete os valores fundamentais defendidos pelo Instituto, que incluem a preservação dos direitos fundamentais e a democracia social, que é o espírito da Constituição de 1988.
Como órgão de consulta do Poder Legislativo, o Instituto tem participado dessa discussão, assim como nas questões envolvendo o funcionamento e regulamentação das plataformas digitais, cujo papel hoje é muito impactante nas relações pessoais e profissionais. Tivemos opinião formada sobre o Projeto de Lei 2338/2023 de Inteligência Artificial no Senado, e nos manifestamos sobre o chamado PL das Fake News [2630/2020, Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet], que é bem mais amplo do que o nome pelo qual é conhecido.
Quais outros temas estão na pauta de estudos e debates do IAB atualmente?
Por meio das diversas comissões temáticas que temos, o Instituto se debruça sobre inúmeras outras matérias, como todas as que envolvem as discussões penais, que vêm sendo impactadas com muitas iniciativas legislativas, com tentativas de agravamento da penalização como resposta para questões que demandam, na verdade, políticas públicas sociais. Isso impacta muito no nosso sistema penal.
Outra pauta é a questão da preservação das políticas dos direitos trabalhistas. Hoje há uma discussão muito intensa, e um conflito, nem sempre público, que inclui a reforma de entendimentos do próprio STF em relação a uma flexibilização desses direitos.
As matérias constitucionais são sempre muito presentes, porque a comissão de Direito Constitucional está sempre muito ativa.
Estamos também envolvidos no anteprojeto [de revisão] do Código Civil, feito por uma comissão de juristas presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão, do STJ, tema que envolve diversas comissões do Instituto, como a de Direito de Família, Empresarial, Civil, Sucessório. Temos várias propostas. A discussão é se vai haver ou não uma reformulação do Código. Há uma corrente que diz que talvez seja precipitado; outra que acha que é importante uma grande reformulação, porque passaram-se 20 anos, a sociedade mudou muito; e há aqueles que defendem alterações pontuais.
Outro ponto muito importante que tem sido pauta da instituição e da advocacia é a questão do processo inclusivo e não discriminatório. Temos comissões ativas nas áreas de igualdade racial, direitos da mulher, e direitos das pessoas com deficiência, abordando questões capacitistas, de gênero e raciais. O Instituto, inclusive, tem um parecer que se tornou um paradigma sobre reparação racial, um tema até recentemente pouco discutido. O Estado deve avaliar os prejuízos causados pelo longo processo de escravização, e tudo o que dele decorreu de forma velada.
A paridade de gênero na advocacia também é uma pauta importante. As últimas pesquisas já indicam que há um número maior de pessoas do gênero feminino do que do gênero masculino atuando na profissão, tornando a paridade um tema fundamental. No contexto da reparação racial e da discriminação, vale lembrar que é obrigatório que os conselhos das seccionais da OAB reservem pelo menos 30% de suas vagas para negros e pardos. Essa medida é crucial para que a Ordem reflita a realidade da advocacia atual.
No entanto, esses avanços ainda precisam ser refletidos no Judiciário, que permanece um espaço de poder dominado por homens. Há uma preocupação com a superação do machismo estrutural que ainda prevalece na sociedade e em várias esferas de poder.
Além disso, todas essas demandas sociais, humanas, estão conectadas dentro de um contexto maior, que diz respeito à pauta ambiental. A situação que o mundo passa com relação à preservação da própria humanidade. O Brasil tem um papel central no debate público internacional, dado o agravamento das emergências climáticas e os impactos no meio ambiente. É fundamental que o Estado brasileiro e a sociedade ofereçam as ferramentas necessárias para mitigar esses impactos e enfrentar os desafios ambientais.
Como o senhor enxerga o papel do IAB hoje e como ele evoluiu ao longo do tempo?
O Instituto tem sido intransigente na defesa dos valores humanos. Em algumas oportunidades, ele vocaliza com mais veemência que a própria Ordem em determinados temas, justamente por se preocupar com sua obrigação histórica de defender esses princípios. O IAB se mantém identificado com seus valores originários, que são esses valores civilizatórios, mas é claro que os matizes vão mudando ao longo do tempo. O Instituto tem 181 anos. No início era a defesa do abolicionismo, a República, e depois vai mudando, de acordo com as necessidades da sociedade, mas sempre valores humanos, valores que foram inscritos na Revolução Francesa.
Hoje, com a velocidade das informações, o IAB procura se manter atual na comunicação desses valores, que visam desenvolver relações sociais dignas, alicerçadas nos princípios essenciais de convivência humana. E, dentro desse cenário, em determinados momentos em que a Ordem encontra determinadas dificuldades, nessa pluralidade que hoje é a advocacia, o Instituto, por ser uma estrutura mais voltada para o pensamento crítico, social, tem essa oportunidade de ser uma referência, um esteio, seguro, dos valores reais da advocacia. O Instituto hoje continua sendo esse repositório histórico desses valores.
O Instituto também tem uma preocupação com a formação contínua. Sua Escola Superior [ESIAB] tem procurado, diferentemente da Escola Superior da Advocacia (ESA), que tem outro perfil, oferecer cursos aprofundados, voltados não só para a advocacia, mas para todos os setores da justiça, com foco em uma captação informativa de alta qualidade. O objetivo é ajudar a advocacia a entender seu papel e sua atuação, oferecendo uma perspectiva crítica sobre os tópicos discutidos.
No momento desta entrevista, o senhor está em Paris, principal palco da Revolução Francesa, cujos princípios formaram a base para as democracias modernas, aguardando para representar o IAB no 68º Congresso da União Internacional dos Advogados (UIA). Como será essa participação, em um lugar tão simbólico, e qual a importância do intercâmbio com instituições internacionais?
A coincidência desse congresso da UIA em Paris é muito significativa. O Instituto vai compor um painel, com várias instituições presentes, sobre o papel da advocacia e das instituições jurídicas na defesa da democracia. Além disso, nesta passagem pela Europa, vou fazer também uma visita institucional ao Tribunal Internacional de Justiça em Haia.
A integração com instituições congêneres internacionais passou a ser muito importante para o IAB. A chamada crise da democracia ultrapassa fronteiras, especialmente com as novas tecnologias. As grandes plataformas digitais são grandes conglomerados internacionais. Se não houver hoje uma interação, uma cooperação, das instituições jurídicas que sempre defenderam os princípios civilizatórios, na preservação desses predicados num plano internacional, essa fragilidade – dos compromissos dos estados democráticos – se agrava. A gente vem verificando processos semelhantes [de ataque aos princípios] em vários países com larga tradição democrática. E aí não estou discutindo se é a direita melhor que a esquerda, ou a esquerda melhor que a direita, mas de proteger os princípios fundadores que sustentam a escolha de modelos de governo pela sociedade. E esses princípios fundadores hoje vêm sendo muito atacados.
Há um discurso de ações discriminatórias, seja no âmbito social, seja de gênero, de raça, seja no âmbito religioso. Grupos se valem dos próprios instrumentos da democracia para atacá-la. Isso tem sido um problema em muitas democracias, sejam tradicionais, como Estados Unidos, França, Alemanha, Itália, Inglaterra, ou democracias mais jovens, como Espanha e Portugal. Todas elas. Por isso, o IAB se preocupa em dialogar com a advocacia global para que esses valores sejam preservados e fortalecidos, como uma forma de salvaguardar a própria humanidade.